“É importante abrir uma exposição tão lúdica neste momento triste que estamos passando para levar um pouco de alegria e positividade na vida das pessoas. Cultura é muito importante e acabou que esse foi o momento certo para a abertura, depois de sete meses parados. Essa é a nossa missão, levar um pouco de energia positiva às pessoas”, diz Otavio Pandolfo, metade da dupla OSGEMEOS, enquanto passeia pela exposição OSGEMEOS: Segredos na Pinacoteca do Estado de São Paulo, que abre para o público nesta quinta-feira.
O que parecia certo, transformou-se em um futuro incerto não só para OSGEMEOS, mas para o mundo todo. A exposição prevista para março, mês de aniversário dos irmãos, foi adiada devido à pandemia do novo coronavírus. Neste interim, artistas e instituição se uniram para a distribuição de máscaras estampadas pela dupla a populações em estado vulnerável, OSGEMEOS abriram uma exposição em Seul e exibiram seus trabalhos na galeria que os representa em Nova York, a Lehmann Maupin.
Agora, no dia 15 de outubro, passados sete meses do fechamento dos museus, a cidade de São Paulo entra na fase verde e, finalmente, a exposição é aberta, ficando em cartaz até fevereiro de 2021, ou até quando o plano de reabertura durar; já aprendemos que na pandemia é impossível fazer previsões. Como um presente a seus visitantes, a Pinacoteca oferece a entrada gratuita para a exposição até o dia 23/10, sem dispensar a necessidade de agendamento, já que ainda estamos em tempos de protocolos contra a contaminação.
Em entrevista exclusiva à GQ cedida em fevereiro de 2020, quando a pandemia parecia algo distante, OSGEMEOS falaram sobre a exposição e carreira. Confira a reportagem abaixo.
Dizem que por trás de um grande homem existe uma grande mulher. Não é de se espantar, então, que haja uma notável mulher por trás de dois homens como Gustavo e Otávio Pandolfo – mais conhecidos como OSGEMEOS. Margarida L. Kanciukaitis Pandolfo é filha de imigrante lituano, artista e mãe de quatro filhos. “Sempre fui apaixonada por música clássica, ópera e artes plásticas. Li biografias de vários pintores – Matisse, Mondrian, Monet, Picasso, Van Gogh – e eu via que muitas atitudes do Otávio e do Gustavo eram parecidas com as desses artistas. Quando percebi que eles gostavam de desenhar, não poupei esforços para comprar caderno, linhas e lápis de colorir. Vivia procurando livro e revista importada para eles e tenho orgulho de dizer que levei todos os meus filhos para ver ópera e exposições de arte”, revela Margarida que, neste esforço de incentivar a veia artística dos filhos gêmeos, chegou a levá-los para um “curso de criatividade” na Pinacoteca. Era 1983 e agora, 37 anos depois, eles voltam à instituição para montar a maior retrospectiva de suas carreiras com 60 obras, sendo que 50 delas são inéditas no Brasil.
“O programa deste ano pensa na ideia de arte e cidade. O grafite está muito presente em São Paulo e a linguagem dos OSGEMEOS já faz parte do imaginário coletivo da cidade”, explica Jochen Volz, diretor da Pinacoteca. “Em São Paulo as pessoas aceitaram o grafite como uma forma de arte, elas gostam de conviver com os muros pintados e isso virou uma identidade da cidade. Os moradores de rua, por exemplo, adoram porque estamos pintando o lugar onde eles infelizmente moram”, explica Gustavo. A mostra OSGEMEOS: Segredos será, certamente, inspiradora. O público poderá acompanhar a trajetória e processos de aprendizado desses artistas autodidatas e obstinados que começaram copiando ídolos ou amigos mais velhos até encontrarem uma estética própria que hoje é reconhecível no mundo inteiro. “É tudo sobre disciplina e exercício”, ressalta Jochen que dividiu os trabalhos em três grandes núcleos: a relação com a cidade; a conexão com a música; e, as cenas mais lúdicas.
Todos os filhos de Margarida viram o avô, Albino Kanciukaitis, criar objetos com tudo o que via pela frente. O irmão mais velho, Arnaldo Pandolfo, foi o primeiro a aprender e logo começou, ele próprio, a criar geringonças. Hoje trabalha diariamente no ateliê dos irmãos mais novos ao lado de outra grande mulher: Adriana P. Alves é a segunda filha e manager do estúdio. “A nossa criatividade foi muito instigada pelo nosso irmão. Ele sempre resolvia as coisas de um jeito inventivo: reformava o carro e fazia brinquedos para a gente. Nessa época, era preciso improvisar muito. Se a gente quisesse um agasalho ou tênis que víamos nos filmes, tínhamos que fazer! Primeiro porque a gente não tinha grana e também porque não achávamos essas coisas em São Paulo. Minha avó era costureira e um dia ela fez um chapéu Kangol de toalha de banho para mim! A falta de recurso é muito boa para o processo criativo”, explica Gustavo. “Tudo era personalizado, ficavamos horas pintando nossas roupas para usar no sábado. Hoje a gente diz que é estilista, pois as roupas dos nossos personagens são muito elaboradas, pensamos em cada detalhezinho de bolso, costura, estampas e acessórios”, se diverte Otávio. De fato, eles arrasam no mix de estampas!
Os “brinquedos” de ontem são hoje esculturas cobiçadas por grandes colecionadores de arte. Mas como uma brincadeira virou arte? “Gustavo e Otávio desenhavam sem parar e eram muito intensos. Esperavam a feira acabar e pegavam as caixas de papelão e, com uma faquinha, faziam as janelas, portas, etc. Imagina como ficava a minha sala! Quando enjoavam, colocavam fogo em tudo. Uma vez briguei e os mandei para debaixo da mesa, aí eles faziam uma fogueira lá mesmo! Quando liberei o grafite no quarto, achei que eles iriam fazer uns desenhos pequenos. Mas eles pintaram tudo! Era muito colorido, colorido demais para um quarto!”, se diverte Margarida.
E foi justamente o colorido intenso que chamou a atenção da galerista Márcia Fortes. “O resultado pictórico das telas é fascinante. Eles misturam vários movimentos e elementos da história da arte: abstracionismo geométrico, Op Art e o realismo fantástico. É uma linguagem única, universal e, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. O desenho é muito forte, mas o que mais me impressiona é a saturação cromática e como eles dominam e equilibram tons tão vibrantes”, explica a galerista que os representa no Brasil desde 2006.
Mas não foi fácil chegar nesse resultado. Os meninos cresceram no Cambuci, um dos bairros mais antigos de São Paulo. “Era muito tranquilo e as casas estavam sempre de portas abertas. O clima era bem de interior e tudo acontecia na rua: tinha um jogando bola, outro dançando break, pintando uma parede ou jogando taco”, lembra Gustavo. O pacato bairro chegou a ser pintado por outro renomado artista brasileiro: Alfredo Volpi morou na região até morrer, em 1988, onde criou murais, além de retratar o bairro em suas telas. Quando soube que o artista era seu vizinho, Margarida saiu correndo com os meninos para encontrá-lo. “Sabia que ver aquele artista tão simbólico seria um incentivo importante para eles. Volpi estava sentado numa cadeirinha e nos deu um poster de um quadro assinado!” conta a mãe.
Na época, a cultura do hip hop já havia chegado em São Paulo e cativado Gustavo e Otávio. Foi o pai, Walter Pandolfo, que levou a dupla pela primeira vez à lendária estação São Bento do metrô: ponto de encontro considerado o berço do movimento hip hop, rap, break e grafite – onde surgiram nomes como Thaíde, Dj Hun, Metralhas, racionais MCs, Rappin Hood, Mc Jack e Sambra Crew. “Nós chegamos e já estava uma confusão, pois ia começar um racha”, lembra Otávio. A fórmula dos duelos era simples: abre a roda, uma turma dança contra a outra e o público decide fazendo barulho. Quem empolgar mais a galera permanece, quem perder sai do espaço! “Dentro desse mundo do grafite, break, MC, B-boy e B-girls você precisa ser muito bom e ter um estilo original. Senão você sai da roda e mandam você observar quieto.” , explica Otávio.
Antes de entender que o grafite seria sua principal forma de expressão OSGEMEOS chegaram a cantar e dançar no mesmo festival que os Racionais MC, em 1988, na avenida Paulista, e até hoje tiram a coleção de LPs do armário em ocasiões especiais para fazerem a vez de DJ tocando eletrônico, eletro-funk e alguns clássicos dos anos 1980. Já, inclusive, criaram o próprio som para um LP feito com o músico e produtir Pharrell Williams e o artista francês JR e ano passado lançaram outro com o coletivo holandês Ruyzdael.
Aos 13 anos Gustavo e Otávio pediram demissão no banco onde trabalhavam e anunciaram para a mãe “Vamos viver de desenho!”. Começou assim uma jornada de 3 anos aprendendo todo tipo de técnica de desenho e pintura até chegarem nos já famosos bonecos amarelos que hoje ocupam paredes de mais de 60 países!”A gente percebeu que era importante ter um estilo próprio. Quando conhecemos o Speto, por exemplo, vimos que ele já tinha um traço e um desenho só dele. Estudamos muito para encontrar o nosso”, completa Otávio.
“Eu e o Binho estávamos grafitando na igreja Renascer, no Cambuci, e OSGEMEOS foram lá tirar satisfação porque estávamos pintando no bairro deles. Quando eles chegaram lá e viram o que a gente estava fazendo falaram ‘Uau, que legal meu! Ô vamos ser amigo’. E somos amigos há uns 30 anos”, conta Speto. “Assistimos filmes como Breakin’ e Beat Street em 1984. Mas na época não tinha muita informação. Não tinha internet e as fotos, revistas e livros eram raros. Então, a gente se esforçou muito para entender como era o grafite americano e romper com aquela estética, criando a nossa. Na medida que fomos amadurecendo, começamos também a passar mensagens mais globalizadas”, explica. “Fomos passando juntos esse perrengue com muita paixão e com muita dedicação. A gente não parava de desenhar um segundo!”, conclui. “Só entendemos a cultura do hip hop e seus diferentes segmentos na São Bento trocando informações e referências com os outros caras. Aprendemos um com o outro”, explica Gustavo.
Nas ruas , a dupla é influenciada pelo duro cotidiano da cidade: ”São Paulo sufoca. A arte apareceu na nossa vida por extrema necessidade de falar. Foi uma válvula de escape, a gente precisava se expressar de uma maneira ou de outra”, explica Gustavo. “Se você não usar a rua de forma positiva, ela vai usar você. A gente enxergou a cidade como ateliê e o grafite foi uma forma de interagir com a cidade, entender São Paulo”, completa Otávio. No ateliê, mergulham em seus universos e preferem criar cenas mais lúdicas, como janelas para outra realidade. “Às vezes a gente esquece de acreditar no sonho de viver outra coisa. Nessa correria de São Paulo a gente se preocupa com tantas coisas, que esquece de pensar em nós mesmos”, ressalta Otávio.
Como é comum na nossa história, as pinturas dos OSGEMEOS foram reconhecidas primeiro internacionalmente para depois ganhar notoriedade aqui. Em 1999 foram convidados pelos artistas Numente e Pieter para fazer a primeira exposição numa galeria na Alemanha. Rodaram a Europa e, quando o artista Barry Mcgee veio ao Brasil, os conheceu e apresentou para o marchand Jeffrey Deitch, da galeria Deitch Projects, em Nova York, que representava Basquiat e Keith Haring. Foi só em 2005 que a brasileira Marcia Fortes conheceu o trabalho dos OSGEMEOS na Deitch Projects e passou a representá-los. Hoje os irmãos fazem parte do time de uma das mais importantes galerias de Nova York, a Lehmann Maupin que cuida de artistas como David Salle, Gilbert & George e Erwin Wurm. “Com nosso pai aprendemos a ter paixão, a querer fazer sempre o melhor; com nossa mãe aprendemos o significado das palavras liberdade e criatividade”, revela Arnaldo. Está aí o segredo dos OSGEMEOS revelado.
Por GQ