A poética origem do mundo e dos deuses – em suas múltiplas versões – segundo a tradição japonesa. Uma coletânea de relatos e descrições afiadas sobre generosidade e avareza a partir da tinta de um sábio da Idade Média islâmica. O desassossego e a dupla tentação de um mercador judeu perdido na ruralidade do leste europeu e obcecado pelos mistérios do mar.
Três histórias clássicas da literatura separadas pela geografia e que agora se encontram no Brasil graças a um trabalho de tradução realizado por professores da USP. Crônicas do Japão (Príncipe Toneri e Ō-no-Yassumaro), Os Miseráveis (Aljâhiz) e O Leviatã (Joseph Roth) estão à disposição do leitor brasileiro em edições nacionais traduzidas por docentes do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
As obras integram o projeto Literatura Livre, uma parceria entre o Sesc-SP e o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural. A empreitada traduziu 11 textos, já em domínio público, oriundos de povos que, no entendimento dos idealizadores, participam da formação da cultura brasileira. Alguns títulos são velhos conhecidos por aqui, como Coração das Trevas (Joseph Conrad) e Viagens de Gulliver (Jonathan Swift), enquanto outros permaneciam inéditos. Todos os volumes são bilíngues, reunindo tradução e versão no idioma original, e estão disponíveis gratuitamente em formatos digitais no site literaturalivre.sescsp.org.br.
Um jogo de versões
Crônicas do Japão (Nihonshoshi) é uma obra monumental, composta de 31 volumes e elaborada ao longo de 39 anos. Trata-se da história da linhagem imperial japonesa desde a criação do mundo até o século 8, construída a partir de documentos oficiais da Corte, registros guardados em templos, pesquisas em fontes chinesas e coreanas e transcrições de narrativas orais míticas e folclóricas.
Ordenada em 681 pelo 40º Imperador Ten’mu e capitaneada por seu filho, o príncipe Toneri, a empreitada buscava criar uma história coerente para a linhagem imperial, seguindo os moldes da milenar tradição chinesa. Os resultados foram apresentados em 720 à 44ª Imperatriz Genshô e são considerados a primeira coletânea oficial de histórias do Japão. Além disso, o Nihonshoshi é também a segunda fonte mais importante sobre a mitologia japonesa, atrás apenas do Kojiki, obra de 712.
Para a edição que faz parte do Literatura Livre, a professora de Língua e Literatura Japonesa da FFLCH Lica Hashimoto – que também é coautora de um reconto do Kojiki voltado ao público infantojuvenil, batizado como A Origem do Japão – Mitologia da Era dos Deuses – selecionou e traduziu textos contidos nos dois primeiros tomos da compilação. Trata-se das narrativas sobre o surgimento do mundo e dos deuses, que apresentam as principais divindades da mitologia nipônica, e histórias de deuses, semideuses e heróis anteriores a Jin’mu, o lendário imperador fundador do Japão e o primeiro da sucessão imperial que chega até o atual imperador Naruhito.
Chama atenção nesses dois volumes iniciais a estrutura narrativa, que opera conjugando textos-base das histórias a variantes complementares, introduzidas pela expressão “Dizem também que…”. Ao incluir informações a esses textos-base ou contradizê-los, essas variações jogam com pontos de vista e versões oficiais, lembrando a modernidade de uma narrativa polifônica como Rashomon, de Akira Kurosawa. Procedimento que se torna extremamente atual neste período em que verdades unilaterais tentam hegemonia pela força.
“As Crônicas mostraram para os povos da época que o Japão havia incorporado várias histórias. Ele não lia uma única história como verdadeira”, comenta Lica. Segundo a professora, algumas narrativas chegam a conter até mesmo 11 variantes, fruto de versões espalhadas pelo Japão. “No mundo de hoje, em que tentamos criar apenas verdades únicas, é um ‘tapa na cara’ para nos mostrar que não existe uma versão só, não existe certo ou errado, não existe absoluto.”
Um ponto central da tradução de Lica foi a escolha de apresentar nomes de divindades, personagens e lugares importantes da narrativa por um método triplo. Além da versão em português, o texto traz os ideogramas originais e uma adaptação que permite a leitura dos termos como são falados em japonês, registrando suas sonoridades no alfabeto ocidental.
Assim, a Divindade-Perpetuadora-do-Mundo-Terrestre, por exemplo, aparece também como Kuni-no-Tokotati-no-Mikoto e 国 常 立 尊, com cada palavra em português procurando corresponder a um ideograma. O que pode soar à primeira vista como um excesso de fidelidade que atravanca a leitura é, para a professora, um convite a uma apreciação diferente do texto, mais próxima do ritmo do original.
“É como se, para apreciar esse texto, você tivesse que esquecer isso de ler rápido para entender rápido. Você tem que deixar o texto falar no ritmo dele e diminuir o seu ritmo para trabalhar as sensações, ideias e percepções que as histórias tentam trazer”, explica a docente.
Lica espera agora que a tradução estimule estudantes e pesquisadores a se aventurarem nos outros volumes do Nihonshoshi. De acordo com a professora, o interesse já está surgindo entre seus alunos e há planos para colocá-los em conexão com grupos de estudos das universidades japonesas, onde o interesse pelas obras clássicas do país, sobretudo dos séculos 8 ao 10, vem crescendo há cerca de 15 anos.
Leia abaixo trecho de Crônicas do Japão, do Príncipe Toneri e Ō-no-Yassumaro.
Outrora, Céu-Terra eram indistintos
Yinyang não eram Yin e Yang
E o etéreo Céu-Terra era como o ovo de um pássaro.Outrora, efêmero sinal surgiu nessa indistinção.
Era a Luz.
Luz de luminosa magnificência que, ao preencher a frondosa imensidão,
tornou-se Céu, enquanto algo pesado e turvo tornava-se Terra.Distintos Céu e Terra, surgiram divindades.
Quando da criação do Universo, o Japão era como peixes flutuando na água.Criados Céu e Terra, surgiram coisas.
Coisas que pareciam brotos de junco em germinação.
Brotos que transformaram em três divindades supremas de nome:
Kuni-no-Tokotati-no-Mikoto 国常立尊 Divindade-Perpetuadora-do-Mundo-
Terrestre, Kuni-no-Satsuti-no-Mikoto 国 狹 槌 尊 Divindade-dos-Solos-Primordiais-e-
Férteis, e Toyokunimushi-no-Mikoto 豊 斟 渟 尊 Divindade-dos-Campos-e-das-
Nuvens-Férteis.
Humor contra a avareza
Uma sátira social destinada a pessoas que transformaram a prática da avareza em uma virtude. É assim que a professora de Língua e Literatura Árabe da FFLCH Safa Jubran define o Livro dos Miseráveis (Kitâb albukhalâ), uma das obras mais importantes do patrimônio cultural árabe, escrita em 868 por Abu-Uthmân Amr bin-Bahr Alkinâni, autor responsável por sistematizar a prosa árabe e mais conhecido, graças aos seus olhos esbugalhados, pelo apelido de Aljâhiz.
Se com o Livro dos Animais (Kitâb alhayawân) Aljâhiz lançou a zoologia escrita em árabe e com o Livro da Eloquência e da Oratória (Kitâb albayân wat-tabyîn) traçou os alicerces da retórica árabe e da filosofia da linguagem, no Livro dos Miseráveis o autor elabora, conforme aponta Safa, uma enciclopédia científica, literária, social, histórica e geográfica. E faz isso enquanto ridiculariza os avarentos e eleva os argumentos deles ao nível do absurdo.
O texto é uma coleção de histórias e anedotas sobre pessoas mesquinhas, gananciosas e pão-duras. Algumas testemunhadas pelo próprio Aljâhiz, outras que vieram parar em seus ouvidos através de sua teia de relações. “Estudiosos de sua obra chegaram a identificar todos os citados nas histórias, ou como protagonistas ou como narradores das anedotas”, comenta a professora. O resultado é uma trama complexa próxima dos padrões de uma tapeçaria oriental, na qual ganham relevo gananciosos de vários tipos: mestres, estudiosos, cantores, comerciantes, escriba, pedintes.
Um dos grandes méritos de Aljâhiz foi ter dado um tratamento literário para as histórias relatadas, distinguindo-se dos trabalhos de autores anteriores que preocupavam-se eminentemente com o caráter informativo de seus escritos. Mesmo que algumas das narrativas apresentadas possam ser encontradas em seus antecessores, cabe a ele o mérito de uma linguagem elaborada e prazerosa.
Para Os Miseráveis (Albukhalâ), título que integra o projeto Literatura Livre, Safa selecionou, traduziu e adaptou algumas das narrativas que compõem esse clássico do árabe do medievo. “Cada uma das anedotas ou das histórias traduzidas foi elaborada a partir de um texto ‘resultante’ de um cotejo com várias edições árabes existentes do texto, inclusive esta que consta desta edição, que já é uma versão ‘simplificada’ do original”, explica. “A inclusão desse texto árabe em particular serve apenas como referência a um dos textos, para que o leitor brasileiro conhecedor da língua árabe possa caminhar acompanhando as anedotas em língua original.”
Na introdução do volume, a professora conta que as adaptações buscaram tornar a linguagem mais assimilável e o conteúdo das narrativas mais acessível, sem dissipar o ambiente histórico nem empalidecer as cores medievais. Nomes foram abreviados e longas digressões, resumidas, enquanto alguns termos foram transcritos do original, como pesos e medidas (habba, qirât, dâniq, dirham e ratl) e moedas (dinar, dirham e fals).
Safa faz questão de lembrar que essa não é a primeira tradução das histórias do livro de Aljâhiz, ainda que uma versão integral permaneça aguardando sua vez. Segundo a professora, algumas anedotas aparecem de maneira simplificada em As Mais Belas Páginas da Literatura Árabe, de Mansour Challita, e quatro foram traduzidas pelo também professor da FFLCH Mamede Jarouche em Histórias para Ler sem Pressa.
Quando questionada sobre o interesse que a obra pode suscitar no leitor brasileiro, Safa aposta na curiosidade ao redor de seu humor particular. “Talvez o fato de a obra apresentar um tipo de humor característico da cultura árabe islâmica”, pondera. “Ela pode ser uma janela àquela sociedade árabe do século 9, que estava se enriquecendo rapidamente, permitindo esse tipo de sátira expressa numa prosa artística eloquente por seu fundador, Aljâhiz.”
A HISTÓRIA DE ABI-JACFAR
Leia abaixo trecho de O Livro dos Miseráveis, de Aljâhiz.
Jamais encontrei alguém como Abi Jacfar Attartûsi. Durante uma visita à casa de conhecidos, que o honraram com o que havia de melhor para comer, de beber e também de dormir, além de aromatizar seus bigodes com o mais caro perfume, quando sentiu uma coceira em seu lábio superior, introduziu o dedo pela boca e coçou-o por dentro, por receio de que, caso coçasse por fora, a doce fragrância escaparia do bigode e se perderia entre seus dedos.
A dupla tentação da modernidade
Um salto espaço-temporal nos arremessa para o Império Russo no início do século 20, território onde se desenrola a trama de O Leviatã (Der Leviathan), novela de Joseph Roth, escritor e jornalista judeu nascido no então Império Austro-Húngaro.
Um dos últimos trabalhos de Roth, publicado em 1938, o livro conta a história de Nissen Piczenik, judeu comerciante de colares e adornos de corais que habita o isolado vilarejo de Progrody, perdido em algum momento entre a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Homem de hábitos disciplinados e respeitáveis, com um negócio próspero e vida monótona, Piczenik cede ao seu amor pelos corais e ao desejo de conhecer o mar. Abandona as cercanias de sua vila, mergulha na modernidade dos trens e navios e acaba no agitado porto de Odessa. Ao retornar, topa com um concorrente que desova colares sintéticos e baratos para os camponeses e ameaça o tradicionalismo das operações de Piczenik. Uma segunda tentação da modernidade se oferece então no caminho do mercador, confrontando seus valores e reputação.
Para o professor de Literatura Hebraica e Judaica da FFLCH Luis Sergio Krausz, responsável pela tradução do volume, a trajetória de Piczenik se assemelha à de outro personagem da literatura em língua alemã, o doutor Fausto. Contudo, na obra de Roth, o tema do pacto demoníaco reflete ainda a realidade da Europa dos anos 1930.
“Fausto também se enjoa desse mundo estável, tranquilo, rotineiro, organizado, disciplinado e delimitado e quer ir mais longe. Quer transcender os limites e, para isso, se junta ao demônio”, comenta Krausz. “Essa tentação demoníaca está presente na narrativa de alguma maneira. E é algo que também atinge o mundo de língua alemã no período entre-guerras. O flerte com o demônio é o flerte com o nazismo, que toma conta desse mundo a partir de certo momento.”
Se a Alemanha se entregou ao nazismo, o mercador de corais de O Leviatã, por sua vez, cede aos corais sintéticos e ao lucro fácil. Mais que uma correspondência política, entretanto, o professor enxerga na construção narrativa do livro um motivo maior presente nos textos finais de Roth, relacionado aos efeitos deletérios da Primeira Guerra Mundial e à desagregação do mundo no qual o autor cresceu.
“Joseph Roth era um escritor que, principalmente em sua obra mais tardia, olhava com enormes ceticismo e pessimismo para o mundo surgido após o término da Primeira Guerra Mundial”, explica Krausz. Parte disso, conforme aponta o professor, tem a ver com a dissolução do Império Austro-Húngaro, no qual Roth nasceu, menos porque o autor fosse um defensor da organização política ou da estrutura econômica da antiga potência, mas porque Roth estimava as ideias e os conceitos filosóficos e religiosos nos quais via o Império se assentar. Com sua ruína, era toda uma concepção de mundo que vinha abaixo.
Por isso, à medida que se aproxima do fim da vida, Roth lamenta cada vez mais diante do que enxerga como substituto dessa concepção imperial. Três realidades que, para o autor, seriam contínuas e equivalentes: o nazismo, o comunismo e o capitalismo da sociedade de consumo norte-americana.
“Nós tendemos a ver essas três faces da história da primeira parte do século 20 como opostas umas às outras”, diz Krausz. “Roth as via como uma só coisa, como diferentes aspectos de uma só realidade. E essa realidade era justamente o que ele entendia como a banalização da vida humana, o aplanamento da consciência, a perda e o esquecimento dos valores transcendentes, dos valores religiosos e filosóficos. A perda, para o ser humano, da perspectiva da eternidade.”
Assim, quando o mundo tradicional, religioso, pessoal e afetivo de Piczenik desmorona, a modernidade preenche seus escombros com cosmopolitismo, indiferença e falta de fé. O demônio é poliglota, usa brilhantina e colarinho alto. E prefere a facilidade e a lucratividade do falso ao trabalho dedicado de uma casa com cantoria, bebida e fumo para os clientes velhos amigos. “O fato de que o nosso mercador de corais acaba sucumbindo aos corais sintéticos e passa a misturá-los com os verdadeiros tem a ver com essa falsificação da vida, essa banalização da existência”, aponta o professor.
Quanto ao processo de tradução, Krausz conta que a prosa elegante e clara de Roth não ofereceu grandes desafios. Fluente em alemão desde a infância, o professor pontua que precisou apenas “ouvir” as palavras do próprio autor e as correspondências em português surgiram.
“O texto dele tem uma musicalidade, uma coesão, um equilíbrio e uma harmonia que são impressionantes, é um texto que leva o leitor pela mão com muita segurança, por um caminho claramente delineado. Não tem nenhuma frase que você precisa parar e ler duas vezes: é como uma viagem de barco sobre águas muito plácidas na mão de um comandante muito habilidoso”, finaliza Krausz.
O HOMEM DE PROGRODY
Leia abaixo trecho de O Leviatã, de Joseph Roth.
Os camponeses saudavam Nissen Piczenik com abraços e beijos, em meio a risos e choro, como se reencontrassem, depois de décadas, um amigo de quem sentiam muita falta. Eles lhe queriam bem, até gostavam dele; esse judeu ruivo, quieto, alto e magro, com seus fiéis olhinhos azuis de porcelana, às vezes tão sonhadores, nos quais habitava a honestidade, a retidão no comércio, a astúcia profissional e, ao mesmo tempo, a tolice de um homem que nunca deixara a aldeia de Progrody.
Por GQ