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120 anos de José Lins do Rego: de menino de engenho a imortal

Em 3 de junho de 1901 nascia um garoto na Vila Pilar, no Engenho Corredor, interior da Paraíba. As engrenagens do engenho de açúcar que moviam o Brasil no século XX agora representam uma ordem social e cultural que se foi. José Lins do Rego ficou. Neste 3 de junho, 120 anos depois de seu nascimento, seus escritos permeiam a literatura brasileira como um de seus grandes expoentes e seu nome marca desde o Flamengo até um dos maiores concentradores de arte do Nordeste, o Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa.

A obra literária de Zé Lins é dividida em três partes. O mais famoso é o Ciclo da Cana de Açúcar, que abrange seus livros mais falados como ‘Menino de Engenho’ (1932), ‘Doidinho’ (1933),Banguê'(1934) e ‘Fogo Morto’ (1943). Esta fase não foi apenas uma denúncia da decadência do engenho enquanto instituição brasileira – foi um relato pessoal e sincero sobre o sangue e a terra de um Nordeste em transição.

“Aquele que retratou o fim de um ciclo econômico e social, a decadência do patriarcado da cana de açúcar, que foi tão poderoso na região nordestina.”

120 anos de José Lins do Rego: história do escritor da PB marcou a literatura brasileira
120 anos de José Lins do Rego: história do escritor da PB marcou a literatura brasileira

O Ciclo do Cangaço, formado pelos romances ‘Pedra Bonita’ (1938) e ‘Cangaceiros’ (1953), narram o misticismo do Sertão com uma linguagem que conhecemos. É familiar o jeito que Zé Lins fala da seca e da sua violência.

“Ele participa desse movimento regionalista que defende as tradições regionais, as tradições locais, a culinária, o folclore e a cultura popular; cultura material. E ao mesmo tempo defende a renovação da linguagem e nem tão diferente de outros regionalistas então, eles se aproximam de uma coloquialidade, da oralidade e da espontaneidade na procura da caracterização dos tipos populares”, explica o professor e escritor Bernardo Buarque de Hollanda, autor do livro ‘ABC de José Lins do Rego’ (2012) e ‘O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego’ (2004).

Junto com seu grande amigo Gilberto Freyre, José Lins do Rego fundiu o regionalismo com o modernismo na década de 30. Durante muito tempo, ideias modernistas e regionalistas estiveram em campos distintos, até por uma certa busca por hegemonia, conforme explica Bernardo.

A partir dos anos 30, elas passam a se convergir e narrar o Nordeste como forma de entender seus processos de mudança – saindo de um mundo rural, com a formação das elites urbanas e a perpetuação das desigualdades sociais.

A última parte das suas obras são suas publicações independentes, crônicas, críticas literárias e ensaios. Mas, antes de ser José Lins do Rêgo, escritor consagrado e patrono da 25 cadeira na Academia Brasileira de Letras, ele foi Zé Lins – um homem solitário, moleque melancólico, apaixonado por futebol, pelo riso e pela vida.

O que Zé Lins tinha que chamou a atenção de Vladimir Carvalho era a semelhança. Nasceram em cidades próximas, Lins em Pilar e o cineasta em Itabaiana, cidade onde o autor de ‘Doidinho’ aprendeu a ler, no mesmo colégio onde o pai de Vladmir estudava.

Ao olhar fotos do escritor e seu próprio reflexo no espelho, se sentiam parecidos. Coisa de adolescente. “Esses, na minha perspectiva são laços muito fortes, embora invisíveis como fios da memória.”

A figura e os livros de Zé Lins acompanharam Carvalho a vida toda. Quando criança, no início dos anos 40 do século passado, não existia televisão e a luz elétrica acabava antes das dez horas – as rádios silenciavam e o breu tomava conta.

“Praticamente fui alfabetizado tentando decifrar as primeiras linhas do romance ‘Menino de Engenho’. Esse livro o meu pai lia trechos dele à noite após o jantar para nós da família”, conta.

Por isso, em 2001, não teve dificuldades de pôr a ideia do um filme no papel. ‘O Engenho de Zé Lins’ imortaliza as obras e humaniza o escritor.

As imagens do Engenho Corredor registradas por Vladmir mostram sua falência. Abandonado, virou um fantasma na paisagem do Agreste e passou a ser ocupado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Já era um lugar melancólico, desde a década de 1900, quando pertencia ao avô do escritor, Coronel Zé Lins.

José perdeu a mãe com poucos anos de vida, e seu pai seguiu a vida sem ter uma presença forte no seu crescimento. Assim, o autor foi criado por duas tias, Tia Maria e Tia Naninha, no engenho do avô, com quem nunca teve boas relações.

Maria, sua maior figura materna, também morreu durante sua infância, já marcada por grandes sofrimentos. Naninha casou e logo também partiu. “Ele teve uma infância solto, na bagaceira, com os moleques da bagaceira, como se falava antigamente. E uma vida cheia de perdas”, explica a diretora do Museu José Lins do Rego, Carminha Diniz.

Com cerca de nove anos de idade, José foi para Itabaiana, estudar no colégio Nossa Senhora do Carmo e pouco tempo depois vai para João Pessoa, estudar no Pio X, aos 11 anos. Foi na capital que ele escreveu seu primeiro artigo, falando sobre Joaquim Nabuco na revista Pio X . Assim, foi despontando para as palavras.

Enquanto os engenhos de açúcar do interior da Paraíba perdem espaço para as usinas, José Lins parte para Recife e com 15 anos passa a estudar no colégio Carneiro Leão.

Depois, ingressa na faculdade de direito. Lá ampliou seu ciclo de amizades com nomes como José Américo de Almeida e Osório Borba. Também conheceu Gilberto Freyre, que acabava de voltar da Europa. “Foi bem sugestivo para ele essa amizade, porque ele (Freyre) voltou com a cabeça aberta. Muito cheio de novidades; diferente da vida daqui”, disse Carminha.

Ele se forma em 1923, mas não gostava muito da profissão. No Brasil da década de 30, quem não tinha vocação para medicina ou engenharia fazia direito, mas José também não tinha apreço pelas legislações e não deu muita importância para o curso. Quando o avô lhe deu dinheiro para entrar no quadro de formatura, ele gastou tudo tomando cerveja nos bares de Santo Amaro – como conta ‘O Engenho de Zé Lins’.

Apesar disso, exerceu a profissão a vida toda. Em 1924, se casa com Filomena Massa, filha do senador paraibano Antônio Massa. Logo depois, assume um cargo em Manuasu, cidade em Minas Gerais, como promotor público. Passa pouco mais de um ano pelas terras mineiras e segue para assumir como fiscal de bancos em Maceió, em 1926. Foi em Alagoas que se encontrou.

“Zé Lins do Rego não gostava muito da profissão dele. O que ele gostava mesmo era literatura (…) Maceió foi o grande celeiro cultural para Zé Lins do Rego”, afirma Carminha.

Na cidade, passa a ser colaborador do Jornal de Alagoas e assim faz amizade com Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Hollanda, Aldemar Cavalcanti… E é ele que sugere a Jorge de Lima o tema para ‘Essa Negra Fulô’ (1947).

Bernardo explica que o grande desejo e a grande ambição de Zé Lins era o mundo das letras, da arte, cultura e literatura. O tempo e a força que tinha, era dedicados à escrita.

José Lins do Rego estreia em 1932 com ‘Menino de Engenho’. Assim como a maioria dos escritores, ainda sem o reconhecimento e custeando sua própria produção. Apesar disso, o livro foi um sucesso. Bem vendido e criticado, projetou o escritor dentro da cena literária brasileira e ele continua sendo lido, visto e falado durante o todo o Ciclo da Cana de Açúcar.

Zé Lins então faz o caminho de muitos nordestinos da época. Vai para a então Capital da República, o Rio de Janeiro, a convite de um editor. Sua publicação passa a ser quase anual, em uma produção de romances com o destino até seu ápice atingido com ‘Fogo Morto’, em 1943 , que até hoje é considerada a sua obra prima, como explica Bernardo.

Lins foi um escritor prolífico e chegou a ser colaborador regular de jornais no Rio de Janeiro. Todos os dias, escrevia três crônicas para diferentes publicações. Teve, inclusive, uma coluna no Jornal O Globo chamada Conversa de Lotação – fruto das tardes passadas com amigos e torcedores do Flamengo na Confeitaria Colombo, em Copacabana. Apesar disso, sua grande notabilidade foi a produção de romances.

Ele surpreendeu a todos, inclusive a si mesmo, e foi escritor muito vendido e muito lido na época. ‘Menino do Engenho’ foi premiado e acabou sendo o primeiro livro de um paraibano a ganhar o Prêmio da Fundação Graça Aranha. Além disso, várias obras dele foram traduzidas para diversas línguas como espanhol, inglês, russo, italiano e até coreano. Para Bernardo Buarque de Hollanda, isso mostra como a linguagem de Zé Lins é universal e aponta no interesse dos públicos estrangeiros uma relação do local com o internacional.

“É um autor sempre ligado à terra, a sua localidade, mas também ao tema, a sentimentos, a questões humanas que ele reconstitui e que ganha uma amplitude internacional à medida que interessa outros países do mundo.”

Dois anos antes de morrer, em 1955, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira 25, sucedendo Ataulfo de Paiva. Em 1956, tomou posse.

Apesar de ser considerado um escritor de sucesso e um homem com um amplo ciclo social, Lins também era conhecido por ser um homem melancólico. Bonachão, mas o olhar triste marcava sua personalidade e seus livros, com uma escrita que denota carência e retrata protagonistas decadentes.

Ele teve três filhas, que ele chamava de três Marias: Maria Elizabete, Maria das Glórias e Maria Cristina, que foram frutos de muita alegria e marcam um fato importante em sua trajetória. Outro ponto de memória são as mortes que marcaram sua infância, sua mãe e Tia Maria. Mais tarde, a vida leva seu avó, com quem não tinha uma boa relação, mas que sua influência patriarcal pôde ser vista durante todo o Ciclo da Cana de Açúcar.

No filme ‘Engenho de Zé Lins’ é revelado um segredo de família. Foi um incidente na infância, quando Zé atirou acidentalmente em outro menino de engenho, um companheiro. Quase ninguém soube do ocorrido, nem mesmo seus avós, presentes na casa no momento do tiro. Neto de coronel, ele foi protegido, mas viveu martirizado com a lembrança e a culpa.

O assunto não era comentado. Rachel de Queiroz relata no documentário que sempre que o amigo estava triste, outros brincavam. Diziam, ‘deve tá pensando no menino’.

O conflito interno do escritor também foi contado por amigos como Carlos Heitor Cony, Ariano Suassuna e Thiago de Mello. Todos relatam a alegria pela vida vista no olhar de Zé Lins, que vivia em dicotomia com uma grande tristeza. Vladimir Carvalho conta que essa dualidade chamou atenção na produção do documentário:

“Impressionou-me muito conhecer a personalidade dividida e torturada do romancista, que alternava estados de espírito diametralmente opostos pondo-o ora afável e alegre, cheio de uma verve natural que encantava os amigos, ora triste e deprimido a ponto de preocupá-los. Acontecera na sua infância um incidente fatal que o marcou para sempre, quando atirou sem querer matando um amiguinho. Isso foi um peso terrível que carregou por toda vida. Por isso só encontrava algum consolo como ardoroso torcedor do Flamengo, uma paixão que o aplacava.”

Diferentes de outros escritores nordestinos regionalistas, Zé Lins tinha uma paixão especial por futebol. Escreveu cerca de 1571 crônicas inéditas no Jornal dos Esportes entre 1945 e 1957. Torcedor fanático do Flamengo, sua paixão começou já tarde na vida, apenas em 1938.

Três anos depois da sua mudança para o Rio de Janeiro, aconteceu a Copa do Mundo na França, a terceira edição do campeonato, em que o Brasil, já com um futebol profissionalizado, manda pela primeira vez um time com atletas negros. É a performance do artilheiro da seleção brasileira Leônidas da Silva que o cataliza e o arrebata para a elite do futebol naquele momento – até então, ele era indiferente, segundo Bernardo.

Então, passa a ter um envolvimento cotidiano com o futebol. Se torna sócio do Flamengo e começa a participar da política do time. Foi dirigente e chegou a ser chefe de delegação durante a primeira excursão do Flamengo para a Europa. Teve a coluna Esporte e Vida do Jornal dos Esportes, assumiu funções no Conselho Nacional de Desportos e também foi secretário-geral da Confederação Brasileira de Desportos.

Durante suas pesquisas para o livro ‘O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego’ (2004), Bernardo procurou mostrar como a crônica esportiva de José tem uma narrativa que se relaciona também com seus romances, retirando o caráter apenas anedótico, pitoresco e folclórico do futebol.

“A crônica esportiva tem essa capacidade. Ao contrário do romance, em que você lê sozinho, em voz baixa, fechado consigo mesmo. A crônica tem essa circulação pelos jornais. Tem essa mobilização. O resultado tem a discussão do dia seguinte. Então eu queria mostrar como havia um ideário modernista que passou pela sua escrita, (…) categorizando e mostrando aspectos estilísticos e de conteúdo que mostram como ele vivia o futebol como um fenômeno popular e como o escritor também devia ter uma relação com as coisas da cultura popular”, explica.

A sensibilidade em abordar temas familiares e universais de todos brasileiros fascinam e atraem leitores para as palavras de Zé Lins. Antes de ser diretora do Museu José Lins do Rego e antes mesmo de fazer parte da equipe, que compõe há 40 anos, Carminha já via em Lins um amigo.

Vinda de família sertaneja, seu pai também era do campo e grande parte da sua infância foi em sítios do interior paraibano. Quando leu José Lins do Rego pela primeira vez, teve um impacto.

“Eu vi no que Zé Lins escrevia o que eu tinha vontade de escrever e o que eu tinha vivido também. (…) Aquela vida livre; aberta. Aquela vida que tinha dificuldades também, que eu passei a admirar mais ainda”, relata.

“Vejo que além da temática de seu ciclo da cana de açúcar, a forma simples, direta e visceral de sua escrita lembra, – como ele próprio reconhecia – os grandes vates da terra, notáveis narradores do povo, os poetas do sertão e das feiras, ainda hoje presentes em nossa cultura. Nesse ponto ele era o mais puro e genuíno criador da nossa literatura”, diz Vladimir de Carvalho.

O cineasta participa da 39ª edição da Semana Cultural José Lins do Rêgo com programação online. Realizado pela Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc), o evento vai até o sábado (5).

A programação traz bate-papos sobre a obra de José Lins do Rêgo e relação com aspectos como música, futebol e sociedade. A semana cultural acontece de forma virtual no canal da Funesc no Youtube.

Em comemoração aos 120 anos de Zé Lins, o Governo do Estado da Paraíba instituiu o Ano Cultural José Lins do Rego. Na Funesc, além da semana cultural, o ano será marcado com atividades mensais.

O cineasta acredita que, apesar dessas iniciativas, ainda considera alheia a preservação do patrimônio desse escritor, especialmente devido ao processo de descaracterização dos engenhos Corredor e Itapuá, a paisagem onde se movimentou a maior parte de seus personagens.

“No mínimo transformando-os em centros culturais e educativos, ora como museus vivos, ora como escolas para servir a comunidade num lance de ressignificação daqueles ambientes”, explica.

Um acervo, doado pela família, é preservado no Museu José Lins do Rego, localizado no Espaço Cultural, em João Pessoa. Com móveis do escritor, é uma pequena entrada na vida de quem narrou grande parte da Paraíba.

O relógio que tocava sempre pontualmente às 12h nos Engenho Corredor, a máquina de costurar manual que fez o enxoval de Zé Lins, mais de 5 mil volumes do acervo bibliográfico do escritor – todos estão no museu. Além disso, a sala de estar de sua casa no Rio de Janeiro ganhou um ambiente especial e foi reproduzida no local, com todos os móveis originais.

Durante a pandemia, o local está fechado para visitações presenciais. Porém, uma tour virtual com digitalização 3D, realidade aumentada e fotografia em 360° leva o público para dentro da vida e renova a obra de José Lins do Rego.

Por G1

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