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Emicida estreia doc no Netflix: ‘A gente foi desconectado da grandiosidade da cultura afro-brasileira’

A cortina se abre, a luz amarela toma o palco e a plateia. Leandro Roque de Oliveira está ali diante de mais de 2 mil pessoas no palco onde pouquíssimos artistas negros tiveram a oportunidade de pisar. Na plateia, rostos negros, brancos, gente de periferia, da elite, gente de todo lugar, mas especialmente a avó de Leandro, que nunca tinha estado ali. A emoção ao final, que acontece no camarim, entre os irmãos Leandro e Evandro tem muito dessa avó e da oportunidade de proporcionar a ela o que outrora lhe foi roubado:

“Nossa avó estava na plateia. Ela não entrou naquele lugar ao longo da vida dela inteira. A sensação que nós temos ali que estamos conseguindo entregar para as gerações que vieram antes da gente algo que foi roubado delas”, conta Emicida, falando da emoção após o primeiro show da turnê.

Emicida no palco do Theatro Municipal de São Paulo em cena de
Emicida no palco do Theatro Municipal de São Paulo em cena de “AmarElo – É tudo pra ontem” (Foto: Jef Delgado )

Falamos de AmarElo – É Tudo Pra Ontem, o primeiro documentário realizado por Emicida, seu irmão Fióti (Evandro) e a LAB Fantasma, que estreou hoje no Netflix. Não é um documentário sobre o sobre o show do álbum AmarElo. É uma viagem pela história do movimento negro nos últimos 100 anos, sobre personagens que foram apagados da história “oficial”, sobre oportunidades tiradas e que “no presente” podem ser ressignificadas: “A gente foi desconectado da grandiosidade da cultura afro-brasileira. A gente foi desconectado da beleza da produção de tanta gente boa. O negro não ‘contribuiu’, ele ‘criou’ a cultura brasileira. Então eu acho muito importante que todo mundo assista esse filme e pense quão foi furtado ao longo do tempo pelo que chamamos de história oficial. Esses personagens foram invisibilizados. Essa invisibilização serve a um processo que mantem a pessoas de pele escura e as indígenas num lugar de subalternidade”, analisa o rapper.

AmarElo é o fio condutor dessa história. Um álbum lançado em 2019, que teve a abertura da turnê em novembro, mês da Consciência Negra, mas que encontrou um 2020 hostil, árido, sem possibilidade de aglomerações e apresentações presenciais. “Embora a gente esteja vivendo um momento de muita angústia, eu acho que é nesse tipo de momento que a gente deve se provocar a observar o que a gente já produziu de positivo. A partir dessa positividade a gente dá continuidade a ela”, diz o cantor e produtor do documentário.

O que teria sido dessa turnê sem a pandemia? O que seria desse documentário sem a pandemia? Nunca saberemos. O que podemos ver e vivenciar são as cenas, algumas delas raras, que o filme apresenta e tomá-las para nossa realidade presente.

Conversei com Emicida pela terceira vez esse ano. A capa da GQ Brasil em março (com a entrevista em fevereiro) e a live logo em seguida, já no começo da pandemia, mostravam dois universos distintos e distantes: o mundo pré-pandemia, sem os medos e mortes que viriam logo em seguida (já são 177 mil no Brasil) e já na live, em 24 de março, com a quarentena começando, as incertezas de um futuro sem perspectivas.

Agora o encontro, novamente através da tela do computador, veio com um calor e esperança nos olhos, que vem daqueles seres humanos diferentes, que conseguem enxergar além do que vemos. Leandro é um visionário que vai tateando no escuro e achando caminhos que outros não ousaram trilhar ou não tiveram a oportunidade (quem sabe ousadia). Um doc que será visto no mundo inteiro, que mostrará o outro lado da história negra brasileira, sem a “democracia racial” que ficou conhecida na cultura brasileira, mas que se mostrou perversa para os 56% da população brasileira, segundo dados do IBGE.

Que histórias não foram contadas? Que personagens foram arrancados dos livros e jogados nas páginas policiais ou no ostracismo? Que possibilidades positivas não foram apresentadas ao povo preto? Que esperanças foram arrancadas?

Personagens do presente e do passado se misturam para contar a história dos últimos 100 anos do movimento negro: Ruth de Souza, Lélia González, Milton Santos, Wilson Simonal, Nei Lopes, Abdias Nascimento e Wilson das Neves são alguns deles, que com sua militância, cada um a seu estilo, foram excluídos da grande mídia e diminuídos em certo ponto. O filme lhes dá a luz que merecem.

Emicida busca mostrar em uma hora e meia um resumo do que podemos ser.

Entrevista completa com Emicida para a GQ Brasil:

1. Como está sendo lançar esse documentário em um momento tão conturbado para o país e o mundo? Tudo o que você diz no documentário tem um sentido ainda mais forte, porque é o povo preto que está morrendo e sofrendo mais.
Emicida:
O sentimento primeiro é de desespero. Não o desespero por causa da situação política. É um desespero porque estou muito nervoso porque é a primeira vez que eu faço um documentário de fato. É a primeira vez que eu atuo na elaboração de um roteiro junto com um time maravilhoso, mas que eu atuo na condução, na forma como essa história deve ser contada. Embora a gente esteja vivendo um momento de muita angústia, eu acho que é nesse tipo de momento que a gente deve se provocar a observar o que a gente já produziu de positivo. A partir dessa positividade a gente dá continuidade a ela. É como eu dizia na primeira mixtape: ‘Quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo’.

Esse é o momento de olharmos a confusão em que estamos imersos e pensar: ‘Vamos voltar algumas casas e pensar onde é que a gente se perdeu?’. Para mim o filme trata disso. Eu mostrei o filme para uma amiga minha e ela terminou o filme chorando. É bom chorar de beleza. A fúria da beleza. Como a beleza pode ser ‘violentamente pacífica’ como diria Os Racionais. É bom que a gente consiga verter lágrima por uma coisa positiva.

Tem um poema Quintana que eu adoro que diz que não olha pra foto dele criança porque ele tem um receio do que aquele menininho vai pensar dele hoje. Eu adoro esse poema porque é a sensação que eu acho que temos assistindo o filme. O que todas aquelas pessoas imensas, gigantes, gênios, pensariam do contexto que a gente está hoje? A minha amiga quando terminou o filme falou assim: ‘Eu tô com uma sensação que explode o meu peito de eu posso fazer mais’. A grande provocação do filme é essa: sejamos mais.

2. Você cita um provérbio iorubá: ‘Exu matou um pássaro ontem com um pedra que lançou hoje’. Isso me parece uma busca pela ressignificação de uma história que já foi feita, mas nos foi passada da forma errada. É possível ressignificar a história dessas pessoas pretas?
Emicida:
Sim. Eu acho, inclusive, que temos a honrosa posição de estar no lugar onde as coisas podem ser mudadas, que é o presente. O futuro não existe e o passado já foi. Podemos olhar pra ele (passado) e ter como uma referência, principalmente do que não queremos reproduzir. A gente precisa se relacionar com ele para aprender e não cometer de novo os mesmos equívocos que os seres humanos cometeram no passado. Daqui desse lugar em que temos ferramentas e a possibilidade de construir algo, é nesse lugar que o documentário coloca a gente. Ficamos vivendo muito entre o passado e o futuro. ‘O que eu já sofri? O que ainda vou viver?’. Acabamos nos desassociando do presente. Assim a gente perde esse superpoder que é ‘o que você pode fazer agora’? É pouquinho, mas o que você pode fazer agora?

A gente foi desconectado da grandiosidade da cultura afro-brasileira. A gente foi desconectado da beleza da produção de tanta gente boa. Tem um ponto muito f… que a Lélia fala: ‘A contribuição do negro criou a cultura brasileira’. Então o negro não ‘contribuiu’, ele ‘criou’ a cultura brasileira. Então eu acho muito importante que todo mundo assista esse filme e pense quão foi furtado ao longo do tempo pelo que chamamos de história oficial. Esses personagens foram invisibilizados. Essa invisibilização serve a um processo que mantem a pessoas de pele escura e as indígenas num lugar de subalternidade.

Acho foda que a gente abra e feche o filme com a figura de Exu. Isso porque Exu é uma entidade extremamente malvista pela ignorância brasileira. Ele é tido como a personificação do mal, que é uma grande ignorância. Ele abre e fecha porque essa é a função dele em toda sua existência. Ele é responsável por começar e terminar, acompanha ‘nós’ nas ruas.

3. O filme mostra figuras negras importantíssimas, mas que não tiveram a oportunidade de serem visto pelo seu real tamanho. O documentário é a oportunidade de mostrar às pessoas que elas eram gigantes?
Emicida: Uma vez um amigo meu disse que vencer era também anistiar quem veio antes porque o contexto era muito pior para quem veio antes. Pense, por exemplo, uma figura como Wilson Simonal que, infelizmente, é vista como uma pessoa que não tinha posicionamento enfático a respeito desse tema. A verdade é que: qual era o contexto que permitia que uma pessoa como Simonal, na sua trajetória de artista em ascensão se posicionasse contra uma estrutura como aquela? No momento que ele homenageia Martin Luther King ele foi parar no DOPS. Ele é lido como uma pessoa alienada, que foi partícipe da ditadura militar e essas coisas não me parecem que são tão verdadeiras assim.

Tem uma pessoa preta em ascensão em um mundo bastante enlouquecedor, que cometeu alguns equívocos, mas que também nas oportunidades que teve colocou seu coração pra fora.

4. No filme, você e seu irmão (Evandro, o Fióti) se abraçam depois do show no Municipal de forma muito emocionada. O que passava ali na sua cabeça?
Emicida:
Tanto eu como o Evandro, de formas diferentes, temos uma noção muito ampla do país em que a gente vive, de como é difícil sobreviver nesse país, de como é difícil sobreviver fazendo arte. A gente entende todas as implicações de fazer isso, entendemos o peso de todas as opções que a gente fez pra chegar ali. Sabemos cada ausência que produzimos ao longo da nossa vida para podermos estar ali. A gente também entende que é importante que a gente crie esse ambiente de fé, de possibilidade. A gente abdica de viver uma série de coisas, de usufruir de coisas que construímos. A construção é contínua e não para nunca.

Quando a gente se abraçou não estávamos chorando, mas começamos a chorar os dois. Isso acontece em todos os shows. Todo primeiro show da turnê a gente chora pra caramba. Eu nunca conversei com ele sobre isso. Provavelmente passa na cabeça dele o mesmo que passa na minha, que são todos os momentos e desafios que a gente viveu. Todas as escolhas que a gente fez.

Existe uma série de teorias de quanto a gente ganha, como a gente gasta, onde a gente anda, o que a gente faz. A verdade é que abdicamos de ter uns carrão pra ter uma empresa e cuidar mais do nosso pessoal. Pessoas que acreditam no hip-hop, que estão dispostas a dar a vida por aquilo. Abdicamos de uma série de coisas que iriam massagear o nosso ego e vaidade para dizer que precisamos pensar coletivamente.

Fazer uma construção daquela com uma equipe de quase 200 pessoas? Isso é dizer que podemos construir coisas grandes e muito inspiradoras pra esse país. Vem tudo de uma vez e quando a gente se abraça, nesse episódio específico, tem uma coisa ainda maior: a nossa avó estava na plateia. Ela não entrou naquele lugar ao longo da vida dela inteira. A sensação que nós temos ali que estamos conseguindo entregar para as gerações que vieram antes da gente algo que foi roubado delas. Isso não é só a presença no Theatro Municipal. É a fala que está no filme: ‘Quantas vezes a gente se olhou no espelho e achou que éramos feios, burro, que não éramos importantes, que a gente não tinha alma?’. Num momento como aquele a gente se abraça porque a vimos 2 mil pessoas gritando e pensando: ‘Como a gente pode acreditar que não tínhamos alma?’

Por GQ

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