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Épico satírico de Byron ganha tradução inédita para o português

Por Luiz Prado
18/11/2020

Cerca de 16 mil versos compostos há 200 anos, uma década de trabalho para uma tese com 1.320 páginas. Esses são os números envolvidos na primeira tradução integral, em versos e anotada para a língua portuguesa de Don Juan, o épico satírico e inacabado de George Gordon Byron, ou simplesmente Lord Byron (1788-1824). Fruto da obsessão erudita de Lucas Zaparolli de Agustini, que defendeu neste ano sua tese de doutorado na área de Estudos da Tradução na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Subversão do mito de Don Juan, a obra de Byron apresenta o protagonista como um sujeito seduzido com facilidade pelas mulheres, que surgem em sua vida graças aos malabarismos do destino. Justamente o contrário da imagem consagrada do grande conquistador sem limites, como apresentada por Tirso de Molina ou Molière.

Para contar ao leitor as desventuras de Don Juan, Byron se vale de um narrador que é praticamente seu alter ego e domina o texto, preenchendo-o com digressões, humor ácido e críticas artísticas e pessoais aos seus contemporâneos.

Don Juan opera um curioso contraste ao contrapor um jovem ingênuo e inocente, o personagem Don Juan, a um narrador experiente e malicioso, especialista nas coisas mais absurdas e excêntricas já realizadas pela humanidade, refletindo na maior parte das vezes a consciência e a voz do próprio autor”, comenta Agustini. “Byron busca, desse modo, provar a tese de Rousseau de que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.”

Byron compôs Don Juan entre 1818 e 1823, publicando de maneira anônima os dois primeiros cantos da obra em 15 de julho de 1819. Com sua morte na Grécia, em 1824, deixou o poema inacabado no Canto 17.

Agustini trabalhou na tradução entre 2009 e 2019, mergulhando de maneira holística na vida e na obra de Byron. Isso aparece em sua tese na forma de uma caudalosa reunião de notas tradutórias e enciclopédicas que acompanham o poema, apresentado tanto em inglês quanto em português. Além disso, um denso estudo das biografias publicadas sobre Byron e da recepção de sua obra no Brasil, ao lado de trabalho descritivo das traduções fragmentárias que Don Juan recebeu no País e de explicações sobre as orientações teóricas de Agustini, preparam o leitor para apreciar o poema.

O tradutor Lucas Zaparolli de Agustini, autor da tese – Foto: Arquivo pessoal

Motivos de uma demora

Até a publicação da tese de Agustini, apenas fragmentos ou versões mutiladas em prosa de Don Juan estavam disponíveis em português. Um fato curioso, considerando a popularidade de Byron no Brasil já nos anos seguintes à sua morte, como atesta a primeira tradução do romance Lara, realizada pelo açoriano Tibúrcio António Craveiro em 1837  – a primeira edição dessa tradução integra o acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e uma versão digitalizada pode ser acessada em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7086.

Como explicar uma demora de 200 anos quando falamos de um dos autores mais conhecidos do Romantismo, que teve uma vida transformada em mito e cuja influência cruzou o oceano e batizou a segunda geração tupiniquim do movimento (o ultrarromantismo ou byronismo)? De acordo com Agustini, de certa maneira é essa própria faceta mítica de Byron que nos ajuda na compreensão dessa longa espera.

“A princípio, durante o século 19, a prioridade da tradução literária de língua portuguesa referente à obra de Byron focou-se naquilo que se diz byronismo, e assim, preocupada com o mito do autor, a maior e melhor parte de suas obras foi ignorada no Brasil até os últimos 50 anos”, explica.

É a partir desse período que estudos acadêmicos sobre a produção satírica de Byron começam a ganhar espaço no País. Em seguida viriam as traduções, como a de Paulo Henriques Britto para Beppo, em 1989, e as versões fragmentárias de Décio Pignatari e Augusto de Campos para Don Juan, que surgiriam nas décadas seguintes.

Arte sobre retrato de George Gordon Byron – (1788-1824)

“Nesses últimos 50 anos, além disso, o inglês concretizou-se como língua franca, substituindo o posto da língua francesa e facilitando a tradução de obras daquela língua a outros idiomas”, afirma Agustini, elencando mais um motivo para o surgimento tardio das edições em português.

Ele identifica também como entraves para a tradução a extensão da obra e sua estrutura, que impõem esforço considerável a quem se arrisca na empreitada. A título de comparação, com seus mais de 16 mil versos, Don Juan equivale ao dobro de Os Lusíadas. Além disso, a disposição original das estrofes, que exige empenho do tradutor para se manter no mesmo número de sílabas métricas, o esquema inovador das rimas e as múltiplas alusões mitológicas, históricas e literárias exigem estudo aprofundado e prolongado, como a década donjuanística de Agustini testemunha.

“Ainda assim”, problematiza o tradutor, “todos esses fatores foram vencidos muito tempo antes por idiomas bem mais distantes da estrutura linguística do inglês que o português. Por exemplo, o chinês e o japonês, que contam com três traduções cada.” Assim, Agustini propõe que a falta de reconhecimento do trabalho de tradução e o pouco interesse da população por literatura podem ser fatores indiretos para a demora de uma versão em língua portuguesa de Don Juan.

Crítica ao capitalismo

Don Juan  e Haidee – Foto:  Reprodução

Um dos aspectos da versão byroniana do mito de Don Juan que Agustini ressalta é a relação entre o personagem-título e o capitalismo: a ânsia por seduzir mulheres a qualquer custo como reflexo da ganância desenfreada e a acumulação insensata simbolizada no mito pela lista de conquistas anotada pelo criado de Don Juan.

Essa analogia, entretanto, não é exclusiva de Byron, sendo mesmo constituinte do personagem, revela o tradutor. “O mito surgiu no âmago do mercantilismo, por volta do século 14, quando despontava o gérmen do capitalismo, e Byron tratou de aprofundá-lo durante o processo da Revolução Industrial, quando o sistema capitalista se estabelecia, literalmente, a todo vapor, e surgiam decorrentes disso as primeiras crises, como a quebra das máquinas de tear pelos ludistas”, conta Agustini. Byron, que se tornou lorde e rico graças a uma herança recebida aos 10 anos, foi um defensor do movimento ludista – uma reação de operários contra a substituição de mão de obra humana por máquinas na Inglaterra -, escrevendo poemas sobre a causa e tendo discursado na Câmara dos Lordes em 1812.

Entre as passagens do épico nas quais essa crítica ao capitalismo é feita, Agustini sublinha o momento em que Don Juan é vendido como escravo sexual para a sultana Gulbeyaz. “O narrador tece diversos comentários negativos a respeito do poder do capital, principalmente quando usado para comprar outras pessoas, aludindo à escravidão, ainda que relativize sugerindo que todas tenham um preço, e leva quem puder pagar.”

“Como o escravo a quem vai arrematar. É mui bom comprar nossos semelhantes, E estão todos à venda, se se olhar Paixões e habilidades. Por semblantes Compram-se uns, já uns por líder militar, Cargos, vai de idade e índole, bastantes Por grana viva; mas todos têm preço, De coroas a seis pence, o vício a ver-se.” (Canto V, estrofe XXVII).

Estrangeirização, domesticação e pós-colonialismo

Para além da fidelidade métrica dos versos e das rimas das estrofes, Agustini orientou seu trabalho tendo como horizonte um tipo de tradução conhecida como estrangeirizante. Apoiada na teoria tradutória do Romantismo alemão, a abordagem estrangeirizante defende que o contato com o fator estrangeiro enriquece o próprio idioma e a cultura de chegada da obra.

“Segundo Goethe, há duas principais formas de tradução”, explica. “Aquela em que tal autor é trazido para nós a tal ponto que o consideremos nosso, e aquela outra em que o leitor precisa se aprofundar no que é estranho, se adaptar às suas condições, usos linguísticos. O primeiro tipo é a tradução domesticadora. O segundo, no qual são valorizados aspectos do estrangeiro, a tradução estrangeirizante.”

Agustini comenta que, no caso de Don Juan, isso representou anglicizar o português em diversos momentos, como na opção por não traduzir a palavra money, considerando-a uma palavra universal no contexto do comércio. Outra frente dessa abordagem envolveu o caráter monossilábico e dissilábico dos vocábulos ingleses, que o tradutor tentou manter através da busca de monossílabos e dissílabos em português. “Essa seria uma perspectiva da tradução estrangeirizante sobre, digamos, aspectos morfossintáticos das relações entre as línguas”, comenta.

Em alguns momentos, contudo, é preciso se orientar pelo outro tipo de tradução, a domesticação. Como exemplo dessa presença em seu trabalho, Agustini cita os versos “Who queer a flat? Who (spite of Bow-street’s ban) / On the high toby-spice so flash the muzzle?”. Repleto de gírias dos séculos 18 e 19, o texto se tornou, na tradução, “Quem zoa otários? Quem (Bow Street proibiu) some em / Cavalo a roubar na rua vida loka?”.

Registro da cerimônia do beija-mão na corte carioca de D. João, um costume típico da monarquia portuguesa – Domínio público via Wikimedia Commons

Outro norte para a tarefa de tradução foi a atenção ao contexto pós-colonial em que ela se insere. Agustini cita Maria Tymoczko, autora de Translation in a Postcolonial Context, a quem a tradução é importante para os países que passaram por processos de descolonização porque ela tem poder de definir a cultura nacional. Nesse sentido, a tradução seria uma ação política, que “canibalizaria” o texto original.

A própria trajetória contestadora de Byron, tanto na vida quanto na literatura, afirma o tradutor, foi central para essa abordagem. “Fator decisivo ao presente projeto tradutório foi o autor do original ser igualmente crítico à postura imperialista em geral, e da Inglaterra em particular, explicitando em diversas camadas semânticas sua ironia e sátira em relação a isso”, comenta Agustini.

Ele cita a passagem em que Byron, na voz do narrador, satiriza Dom João VI, de quem se conta ter presenteado o Duque de Wellington com uma suntuosa baixela enquanto a população brasileira passava fome. “Aqui fica clara a crítica do autor ao sistema colonial opressor.”

“Falei. Agora vai comer a torta No prato que deu o Rei do Brasil E envia ao sentinela ante a sua porta Lasca ou duas do seu luxuoso pernil. Esse lutou, mas a fome ainda pior ‘tá. E fome o povo tem, dizer se ouviu. Você, claro, merece sua ração, Mas, por favor, dá um pouquinho à nação.” (Canto IX, estrofe VI)

“As nuances são tantas durante a tradução de uma obra de proporções épicas, e polêmica, como as obras de Byron, que, seja estrangeirizante, domesticadora, pós-colonial ou tudo junto e misturado, sempre será necessária uma nota de rodapé explicando as escolhas tradutórias. E as notas, nesse sentido, são uma ferramenta domesticadora, mas que abrem espaço ao tradutor e ao pesquisador para complementarem seus comentários”, aponta Agustini.

Uma tradução urgente

O mais importante neste momento, observa o tradutor, é que a tese, realizada em parte com financiamento público, está disponível gratuitamente na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. Agustini revela, porém, que já existem propostas de publicação comercial da tradução, sem nada ainda confirmado.

“Hoje se celebram os 200 anos da publicação de Don Juan. Em 2024, será o ano do bicentenário de morte de Byron, e a publicação de sua obra-prima pela primeira vez traduzida para a língua portuguesa parece um belo presente ao autor dessa obra genial, que não é só divertida e satírica, mas leitura de suma importância para dias como os atuais. Melhor dizendo, urgente”, complementa.

A tese de doutorado de Agustini, contendo a tradução de Don Juan, pode ser acessada gratuitamente na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, no endereço https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8160/tde-04112020-165435/pt-br.php .

Por Jornal da USP

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